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“Como a abelha que colhe o mel de diversas flores, a pessoa sábia aceita a essência das diversas crenças e vê somente o bem em todas as religiões”

25 de fev. de 2011

O Poeta Carlos Drummond de Andrade retrada como foi a sua morte e as primeiras experiências na espiritualidade para o cantor Cazuza:




..."Vi apenas que um vulto se aproximava de mim e senti uma emoção muito intensa, sem saber ao certo do que se tratava. O vulto aproximava-se devagar. Ao divisar sua figura com clareza, meu coração de espírito parecia prestes a sofrer um infarto espiritual.
- Calma, meu rapaz! - saudou-me o espírito, ajeitando os óculos na face.
Estava estupefato. Era o grande escritor, Carlos Drummond de Andrade.
- Fique quieto onde está - prosseguiu ele, procurando deixar-me à vontade. - Aproveite o frescor da noite e a brisa que vem do mar.
Jeito pacato pediu-me licença com o sorriso e, como eu não reagisse logo se alojou junto a mim ali mesmo, nas areias da praia.
- Quer dizer então que você veio para o lado de cá? - perguntou, para puxar conversa.
- Para o lado de cá? - indaguei com estranhamento.
- Claro, para o lado de cá da vida, da morte; do outro lado, ou coisa semelhante.
- É! Parece... - tornei a responder-lhe meio sem jeito, ainda mais daquela forma, deitado aos pés do Drummond.
- Pois é agora estamos reunidos na condição de espírito. Você não ignora esse fato, não é mesmo?
- Não - anuí, gaguejando. Ainda não tinha me recuperado do impacto de encontrá-lo, a primeira celebridade do além-túmulo.
- É isso, meu rapaz. Aproveite seu tempo e sua eternidade particular para se decidir logo. Precisamos de muita ajuda do lado de cá; há trabalho para todos.
- Então você sabe da proposta que me fizeram lá no Santuário?
- Claro que sei! Eu mesmo estava lá quando você chegou. Estava numa outra atividade, mas não havia como ignorar sua chegada.
- Como assim? - perguntei.
- É que por aqui as notícias correm com a velocidade do pensamento. Todo mundo só falava de você, de sua música, de sua chegada.
- Você trabalha por lá também?
- Bem, não é assim exatamente. Vez ou outra eu e alguns outros espíritos vamos dar nossa cota de contribuição. São os velhos artistas da Terra que se reúnem para auxiliar como podem. Assim, quando você adentrou o ambiente, todos já o aguardavam.
 - Todos? Quem?
- Todos aqueles que nos reunimos ali, aproximados pela arte.
- E você? - ousei perguntar. - Como chegou aqui? Digo, a sua morte; foi diferente a sua chegada do lado de cá, não?
- Ah! Sim. Cada um é diferente do outro. Tal a vida, tal a morte. É sempre assim. De acordo com o gênero da vida que se levou dá-se o momento da morte e a situação que se define logo após.
- Então você foi um privilegiado...
- Claro que não. Você aprenderá logo, logo, meu caro, que por aqui não existe privilégio algum. Apenas nos reunimos conforme as afinidades, tendências e gostos.
No caso dos artistas, por exemplo, procuramos dar a nossa contribuição de acordo com a nossa capacidade. Mas de maneira alguma nos furtamos aos problemas criados pelas nossas atitudes. Sempre colhemos o que plantamos.
- Mesmo assim, isso quer dizer que sua morte foi algo diferente, não é?
- Como lhe disse, todos são diferentes de acordo com as aquisições da vida. Quer saber os detalhes?
- Claro! Adoraria saber algo a seu respeito - falei animado. - Acho que eu mesmo me beneficiaria com isso.
- Vamos lá, se você deseja saber algo mais. Porém, não crie expectativas, pois o momento da minha morte foi algo comum. A diferença é apenas que eu gosto de dar tons mais coloridos aos detalhes.
Falando assim, o grande escritor brasileiro e mineiro descreveu para mim seus primeiros momentos após a morte. Sentei-me na areia e, ouvidos atentos, escutava cada palavra que saía de sua boca.
A lua estava maravilhosa, e, àquela altura, eu já me sentia mais renovado.
A morte seria um tédio caso não houvesse vida. Seria uma negação, caso não houvesse nada após a sepultura.
Imagine eu, acostumado a trabalhar produzir intelectualmente, obrigado a ficar ali, parado, indefinidamente. O corpo inerte na fria tumba, deitado, esperando a voracidade dos vermes. Sem pensar, sem produzir, sem ao menos ver as horas passar.
Aguardar o famigerado juízo final? E para quê? Ser enviado a um céu de desocupados, que estacionaram no pior retrato de mau gosto do Olímpio e não aprenderam sequer a tocar um instrumento mais emocionante que a harpa? Ou para ser despachado em direção a um inferno onde o decorador errou na quantidade de vermelho, e os homens, ainda por cima, possuem rabo? A propósito: nunca ninguém perguntou quem paga a conta de todo aquele fogo, em combustão permanente? Que desperdício! Devíamos ir fazer comida no inferno, que tem gás de graça.
Mas a morte, para a minha paz, não é assim, afinal. Na verdade, o que ocorreu comigo foi uma intensa e febril atividade cerebral ou extracerebral, mental, totalmente alheia ao velho corpo.
Pareceu que eu dormia. Simplesmente isso. Mas dormia um sono diferente, com sonhos nítidos povoados por seres, coisas e situações. Eu simplesmente vivia; era tudo.
Mas o corpo não me respondia. E diante daquela agonia de viver sem o corpo e de morrer sem a alma eu via apenas o corpo deitado de boca aberta, num esgar. E eu - eu não era mais aquele corpo - conservava a minha transparência que varava a cama, os móveis, as paredes. Eu era espírito.
O velório é que foi o verdadeiro tédio em minha nova situação de vivo-apesar-de-morto; as homenagens sinceras eram entremeadas com bajulações difíceis de agüentar.
Presenteavam um corpo morto de alguém que estava vivo, sentia-se vivo. Por fim, acabei encontrando um divertimento naquela situação, uma saída para o tédio que ameaçava tomar conta da minha eternidade particular.
Já nos primeiros momentos, aprendi que podia ter acesso aos pensamentos alheios. Ao redor do ataúde reuniam-se curiosos, familiares e antigos colegas de serviço.
Alguns se dedicavam a pensar nos eventuais "direitos" sobre a minha produção intelectual e literária. Era um velório concorrido; até mesmo quem não gostava de mim e me criticava encontrava-se ali, disputando um lugar para bajular o velho defunto. Eu apenas ria e me divertia em saber como os pensamentos agora percebidos e as atitudes que observava divergiam tanto entre si.
Aos poucos, entretanto, o divertimento passou, e o deboche tornou-se monótono. Fui arrastado por forças invisíveis. Literalmente, fui sugado dali para um lugar sem nome certo. Talvez nem fosse um lugar, mas uma situação.
Vi alguém que mais parecia ser um anjo, ou um guardião, já que esse alguém não tinha asas para voar, embora pairasse acima de mim.
Lembrei-me de que nos últimos tempos, ainda de posse do corpo, eu havia sonhado inúmeras vezes com um personagem. Cogitava escrever um texto, quem sabe um romance, e o tal personagem se materializava aos poucos em minha mente, em meus sonhos. Mas ali estava ele, em minha vida real de morto. Era o personagem de meus sonhos.
Porém, mais nítido, mais vivo e sorridente do que nunca. O ser dos meus sonhos e da minha nova vida aproximou e recebeu-me com um sorriso. E, sem falar, ou falando sem articular palavras, comunicou-se:
- Sou um amigo, um mensageiro do Pai.
Estranho, o meu amigo. Ele se dizia um mensageiro, talvez um anjo. Mas parecia tão humano tão igual a mim...
Aproveitei a situação e os pensamentos céleres que passavam em minha mente para analisá-lo, avaliá-lo. Á primeira impressão, parecia gente boa, até honesto. Não se assuste, mas é de se duvidar da honestidade até mesmo de alguém que já morreu. Eu o examinei de cima abaixo, mirando toda a sua transparência transcendental de espírito de luz.
- Como é o seu nome? - perguntei como quem desejava estabelecer uma conversação.
 - Meu nome? Não vem ao caso - disse ele. – Sou apenas um mensageiro.
- Eu não converso com quem não conheço. Gente sem nome! Onde já se viu isso? E ainda mais quando se é anjo, morto ou coisa que o valha.
Ora, a noção mais elementar de boas maneiras, em qualquer cultura, me presume, inclui tratar-se pelo nome, cordialmente. Como podia conviver com um indivíduo sem o mínimo de educação? Não me dar o nome era quase uma afronta, um "até logo" em nosso papo de dois minutos. Será que ele estava foragido das autoridades do Além?
Então se explicaria sua omissão...
- Está bem. Pode me chamar do que quiser.
- Tudo bem - respondi novamente, com cara de desprezo.
"Do que quiser" era meu anjo guardião! Se pelo menos se chamasse Gabriel, Gamaliel ou qualquer nome importante, com o popular e distintivo sufixo "el"... Mas, não.
Era apenas um anjinho qualquer, um simples mensageiro "Do que quiser".
Ele sorriu para mim. Aquele sorriso de garoto maroto, travesso e que conhecia, como de fato conhecia todas as minhas estripulias mentais.
Num gesto nobre, decidi relevar a ignorância daquela alma que, por certo, não recebera educação apropriada. Tornei, então, a indagá-lo. Fiz aquelas perguntas fatais, que exigem respostas decididas, convictas, inéditas:
- Quem é o Pai?
- Deus.
- Deus, o Criador?
- Sim.
- Ah!
- "Ah!", o quê?
- "Ah!" simplesmente "Ah!"; nunca estudou português?
- Não falo disso...
- Bem, então meu "Ah!" pode significar uma pergunta: Se Deus é o Criador, quem o criou?
- Ah! - agora era a hora do meu "anjo" engasgar.
- "Ah!", o quê? - dessa vez fui eu quem indaguei.
- "Ah!", simplesmente.
- Então você não sabe?- tornei a incomodá-lo.
- Claro que sei! Aliás, não sei! Ninguém sabe.
- Então ninguém por aqui sabe a resposta?
- Sabe sim. Ou melhor, não sabe.
- Afinal - perguntei, com tom definitivo - sabe ou não sabe? Que tipo de anjo é você que não pode me responder uma coisinha tão simples assim, tão elementar?
- Eu sei, mas também não sei. Ah! A propósito, você está confundindo tudo: Deus não foi criado; Ele cria. Só isso.
- Então, por que você não me respondeu logo? Isso eu já sabia...
- Se já sabia, por que me fez perder tempo com suas dúvidas?
- Ah!- respondi.
- "Ah!" o quê?
- Só Ah!"!
- Mas...
- Eu não tinha dúvidas quanto a isso. Eu apenas testava você.
- Me testava?-perguntou meu mensageiro.
- É, testava.
- Como assim?
- Eu queria verificar se você estava apto a me tolerar nesta nova vida. Eu apenas queria fazer uma tempestade cerebral, embora eu saiba que nós dois já não tenhamos mais cérebro. Sorry...
- E como me saí, em seu teste?
- Bem, você chegou à resposta, mas faltou um pouquinho de astúcia, não é verdade? Não se preocupe: você me protege e orienta, como todo bom "anjo", e eu faço os diálogos necessários. Não é uma boa parceria? Aos poucos, trocaremos habilidades.
O que ele poderia fazer a não ser sorrir de minhas cômicas e inusitadas pretensões?
Onde estávamos parecia muito mais uma cidade do que uma região do paraíso. Era muito bonito. Mas era uma cidade. Eu jamais gostei daquilo que as religiões ensinavam sobre o paraíso. Era tudo ficção - e, como eu disse, de mau gosto -, invenção de religiosos mascarados. Mas ali, naquela cidade, naquele exato instante, começava uma nova vida para mim.
Deixei para trás o meu amigo mensageiro e fui logo entrando de posse daquela vida cheia de desafios. Acho que ele se cansou de mim. Sempre que o vejo está atrás de mim, correndo, como que tentando me chamar. E eu, sem essa de descanso eterno, sempre com meus papéis e minha caneta estilo Mont. Blanc (também ‘“desencarnada”), saio por aí, com um mentor correndo atrás de mim, fazendo as minhas observações de morto-vivo, jornalista e repórter do Além.

 Texto retirado do livro "Faz parte do meu Show" do médium Robson Pinheiro.

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